Caminho Primitivo: um relato íntimo e transformador

Um ano atrás, eu estava com as costas levemente tortas por causa da mochila, o coração apertado e os pensamentos em turbulência. Estava começando algo que sonhei por muito tempo: o Caminho Primitivo de Santiago de Compostela.

Mas sonhar é uma coisa. Dar o primeiro passo é outra.

Escolhi o Caminho Primitivo, o mais antigo de todos, criado no século IX pelo rei Alfonso II. Um percurso mais solitário, mais bruto, com menos estrutura. Não era uma rota para “turistar”. Era uma jornada para atravessar por dentro.

Nos primeiros dias, a sensação era de deslocamento. Tudo em volta era novo: a paisagem, a rotina, o idioma, os cheiros. Mas havia também um desconforto mais sutil, interno, como se o corpo ainda não tivesse entendido o que a alma estava tentando fazer.

E talvez seja sempre assim no início de qualquer travessia verdadeira: a alma vai na frente, o corpo reclama, o medo lateja.

Eu tinha medo. Medo de não dar conta dos mais de 320 km, medo de me machucar, medo de ficar sozinho demais. Mas uma coisa aprendi cedo: coragem não é a ausência do medo. É caminhar com ele.

Ao longo dos 14 dias de trilha, o ritmo da caminhada começou a se ajustar ao meu ritmo interno. E vice-versa. Comecei a escutar melhor. A observar mais. A respirar diferente. E, com o tempo, percebi que a trilha não estava apenas sob meus pés. Ela estava dentro de mim. Algo silencioso, mas forte, começava a se movimentar.

Tive o privilégio de viver essa caminhada com uma sensação profunda de presença. Na solidão das trilhas, na quietude das florestas asturianas, eu sentia algo que não sei explicar com exatidão. Alguns chamam de espiritualidade. Outros de conexão. Eu chamo de Deus.

Mas não um Deus teórico, decorado ou imposto. Um Deus que se revelava no cansaço do corpo, no orvalho da manhã, no som dos bastões batendo no terra.

Houve dor, sim. Bolhas nos pés, chuva inesperada, dias duros. Mas também houve compaixão entre desconhecidos, silêncios confortáveis, pequenos milagres logísticos.

Histórica e culturalmente, o Caminho de Santiago sempre foi mais do que uma rota física. Era uma forma de penitência, de busca, de promessa.

Hoje, é também uma maneira de resistir à pressa do mundo. De dizer: eu vou andar por duas semanas, sem pressa, sem destino fixo a não ser um ponto que só faz sentido porque foi conquistado a pé.

Quando cheguei em Santiago, confesso: não senti a explosão emocional que esperava. Não chorei, não abracei estátuas, não fiz selfie com a catedral ao fundo.

Fiquei ali, sentado na praça do Obradoiro, olhando as pedras, as pessoas, o céu nublado. O que senti foi mais sutil, mas também mais verdadeiro: um tipo de paz silenciosa.

A sensação de que, por mais que eu voltasse pra casa, algo em mim tinha ficado ali. Ou melhor: algo em mim tinha se tornado caminho.

Hoje, um ano depois, revisito aqueles dias com um tipo de saudade que não aperta, mas aquece. Guardei vídeos, memórias e algumas lições. Uma delas me acompanha até hoje: o medo não é um muro. É uma porta. E, muitas vezes, é a porta de entrada para o que realmente importa.

Paulo Neto
Paulo Neto

Sou daqueles que viajam com os pés no chão e a cabeça cheia de perguntas. Neste blog, compartilho o que acontece quando a gente sai do piloto automático e escolhe caminhos menos óbvios, com mochila nas costas, doses de ironia e uma vontade sincera de entender o mundo (e a si mesmo) fora do roteiro. Aqui, viagem é pausa e reencontro.

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